sábado, 30 de outubro de 2004

No inverno a vida tornava-se atenta a si mesma, compreensiva e íntima. O cheiro se amansava, a lama apaziguava o campo. A voz durante horas silenciosa soava rouca e morna. O ar era úmido, as coisas do quarto isolavam-se através do frio e só a escuridão fundia os móveis. Lá fora a chuva caía sem força, sem cessar. O vidro descido da janela iluminava-se fracamente pela luz dormente do pátio. As gotas escorriam trêmulas, brilhantes, secretas pela vidraça. Mas as folhas se desprendiam das árvores e arrastadas pelo vento nela batiam num rumor quase imperceptível. Gostaria de contar ou de ouvir uma longa história só de palavras, mas ele nesses tempos mantinha-se silencioso e difícil, quase inexistente no casarão. Ela ficava mais sozinha, olhando a chuva. Sentia-se interiormente arroxeada e fria, no seu corpo era lentamente asfixiado um passarinho. Mas isso era tanto viver que as horas decorriam felizes e distantes como se já estivessem marcadas pela saudade. De sua cama larga enxergava o teto perdido nas sombras, as paredes fundindo-se em penumbra. Só a janela brilhava quieta, só o ruído molhado incessante. No ar uma respiração contida pairava no escuro como o bater contínuo de asas de uma borboleta. Voltava as costas para a janela, movia-se devagar no leito de casal da avó. O existir da borboleta continuava a ofegar com os olhos fixos nela. Um vento de gritos vinha do interior da mata como almas fugindo em desespero. Era a mistura das vozes de coruja e das águas, do esfregar das folhas, dos últimos estalidos secos antes da umidade, tudo unido na mesma fuga aguda esgazeada, um vento de gritos atravessando o casarão como um sopro. Ela puxava a colcha quente e grossa com um pequeno cheiro de cinza. Debaixo dela seu corpo e o estreito espaço que seu corpo ocupava tornavam-se um mundo familiar. Deixava então que o medo enfim escorresse, agora que estava abrigada. Procurava mesmo não adormecer para sentir tudo até tudo virar-se por si próprio e transformar-se em outra coisa que não o medo. Assim nada perdia do silêncio da noite de inverno. Os dias eram de uma tristeza perfeita que terminava por se ultrapassar e deslizar para uma quietude sem além. Os ramos vergavam nervosos ao vento, um impulso sem direção torturava as árvores e do rumor sem ritmo nascia como um grande vento fresco a esperança de amar e viver.
Ia para o fundo do casarão com o capote velho sobre o corpo. Um instante ainda parava diante da meia claridade da chuva correndo e depôs seguia. Não via muito à sua frente, seus olhos esbarravam na chuva que parecia subir da terra numa espessa fumaça. Com o rosto frio adiantava-se e alguma coisa era pungente, alta e indecisa no seu coração. Entreabria os lábios recebendo a névoa gelada no centro morno do corpo. Caminhava afastando os galhos pesados d'água, dolorosos, trêmulos. Olhava para trás e não enxergava mais o casarão, chuva, só chuva. Então dizia alto numa voz que soava estranha e audaciosa entre o rumor da água escorrendo:
- Eu estou só.


É um trecho de O Lustre de Clarice Lispector. Um trecho sobre a infância da personagem principal. Um trecho, para mim, demasiado doloroso e belo. Um trecho que me lembra minha infância. A mesma força dentro do peito de criança dizendo que a vida pulsa sem parar. A mesma solidão irremediável para sempre. Só uma criança que cresceu sozinha num casarão silencioso sabe que sensação é essa. A sensação de que é preciso que sempre haja sofrimento e dor, porque é somente sangrando que sabemos que há sangue rubro e quente correndo nas veias. Uma sensação que nutre e destrói, pois é assim que é. Tudo o que nutre, destrói. E além, a certeza atávica e arraigada de que a solidão estará sempre lá, entranhada na alma desde nem se sabe quando. Uma solidão íntima, secreta, companheira. Irremediável para sempre.

quarta-feira, 13 de outubro de 2004

Só pra ninguém ficar dizendo por aí que eu abandonei o blog ou que eu sou sumida, resolvi postar hoje, contrariando meu bom senso, que me manda ir estudar e cuidar da vida.

Pois é, faz tempo mesmo. O negócio é que aulas, de manhã, de tarde e de noite, provas e mais provas, dois estágios (infelizmente não remunerados...) e uma monografia que até que enfim chega ao fim, não me deixaram tempo pra lembrar do meu pobre mundinho abandonado.

Mas, a carruagem sempre anda e aqui estou eu de novo. Guiom veio passar uma semana aqui (agora ele já foi embora de novo, domingo passado) e eu me dei uma folga de todas as minhas obrigações. Ele mudou de emprego, conseguiu um mais legal, lá em Campinas mesmo e parou pra descansar por uns dias.

Minha querida amiga Milena veio de Maceió pra nos ver, o que me deixou muito feliz. Nesse fim de semana recebi e-mails de Patrícia (que está em Caiena, na Guiana Francesa) e de Marie (que está em Lyon, na França). Aí pronto, já viu... Comecei a pensar em todo mundo que eu adoro e que está espalhado pelo mundo. Pensei em Emilie, minha amiga da Martinica que está em Beirute com nosso querido Walid (que está trabalhando por um mês na Jordânia), pensei em Andy em Nova York, e em Grace em Nova Jersey, em Ciryl e Emilie na Índia, em Damien em Hong Kong, e em mais um monte de gente que eu não esqueci, mas não vou citar se não seria um post gigante só com nomes e lugares.

Fiquei pensando nesse povo todo e quase morro de saudades. Os amigos que fazemos deveriam ficar junto da gente pra sempre. Mas não é assim que a vida funciona. Infelizmente.

Minha mudança pra Campinas mudou de tom. No início eu me descabelava pelo aspecto existencial, metafísico da coisa (meu deus! vou embora da minha terra!). Agora me preocupam os detalhes práticos. Transportadora, escola, imobiliária, pediatra, faxineira... Não me revolto mais com o fato, mas continuo em fase de adaptação ao fato.

Semana passada João me veio com essa (no posto de gasolina, depois de observar atentamente a frentista encher o tanque, calibrar os pneus e verificar o óleo e a água):

- Quando eu crescer, antes de ser cientista eu quero ser posteiro!
- O que é posteiro?
- Ohw, mãe! Num sabe não é? É uma pessoa que trabalha num posto de gasolina!
- E o nome num era colocador de gasolina?
- Era, mas agora eu descobri que eles não fazem só isso da vida...
...
- Sim, mas, e aí, tu vai ser cientista também?
- É. Cientista louco!
- Louco?!?!
- Bem, louco, eu não sei se eu vou ser mesmo. Isso eu ainda vou resolver.


Dos últimos filmes que vi dou especial destaque a "Encantadora de Baleias", neozelandês da diretora Niki Caro. É um filme muito lindo, sensível, tocante e muito, muito sutil. A menininha que faz o papel principal, Keisha Castle Hugues, concorreu ao Oscar de melhor atriz e é mesmo super talentosa. Eu, boba que sou, chorei o filme todo. O que não significa que seja um filme melodramático, claro. Mas é com certeza um filme que todo mundo deveria ver, especialmente agora que todos os olhos estão voltados pra o cinema da Nova Zelândia (vide o mega sucesso da trilogia de O Senhor dos Anéis). Não poderia esquecer de "Dolls", do japonês Takeshi Kitano, um filme doloroso em cada cena, lento e com um visual incrível; e como disse Marco Frenette, da Bravo!, um filme sobre a danação do amor e a violência do espírito, mais que isso, um filme em que paixão e obsessão são como sinônimos.

Passei as últimas três semanas ouvindo Portishead e lembrando de Guiom e Luís, dois super fãs da banda. Guidi, Luís, dedico todas as músicas que tocaram na minha vitrola a vocês dois.

Dei um tempo no livro de Berkeley e comecei a ler "O Lustre", de Clarice Lispector. Mas, não adianta fugir... O livro de Clarice me lembra muito o de João Gilberto Noll e aí, o doido do Berkeley se instala de novo no meu quarto e não quer ir embora. Se eu enlouquecer, todo mundo já sabe a causa.

Minha monografia termina, como disse lá em cima. Concluí, com a ajuda de alguns autores da minha bibliografia, que:

A pedagogia da comunicação acredita que a atividade didática é um ato de comunicação e integração cuja preocupação é fazer com que os conhecimentos adquiridos a partir das necessidades dos sujeitos gerem novos conhecimentos, uma vez que essa pedagogia visa satisfazer os desejos dos indivíduos: o desejo de saber, de construir, de ser, de viver.


Queria eu ter sido educada tendo como base uma pedagogia assim... mas eu cresci num colégio feminino e católico, e tive que fazer um esforço enorme pra ser o que eu sou hoje.