segunda-feira, 23 de agosto de 2004

Divagações sobre Berkeley, não necessariamente em Bellagio...


"O Livro das Ilusões", obra de Paul Auster que estou lendo e do qual falei dois posts atrás, é a estória de um professor universitário que perde sua família e reencontra o prazer de viver estudando a obra cinematográfica de um comediante dos anos 30. A grande questão é que esse comediante desapareceu sem deixar vestígios no auge de sua carreira e nunca mais ninguém soube dele. Um belo dia, depois de ler o livro que o professor escreveu sobre seus filmes, esse comediante ressurge do nada e, é claro, vira a cabeça e as idéias do professor de pernas pro ar.

Bom, não vou entrar em detalhes, mas o que quero contar é que em determinado ponto da estória, o professor assiste um filme do comediante (que era também diretor) que ele desconhecia. O filme é sobre um escritor que se refugia numa fazenda para terminar sua nova obra. Uma manhã, quando ele acorda, há uma mulher em sua cama. Refeitos do susto inicial, ela explica que foi convidada a isolar-se na fazenda para estudar para alguns exames. Mais ou menos como ele. Um truque dos donos da casa. Ou uma coincidência estranha. Os dois têm o mesmo nome: Martin. Quer dizer, esse é o prenome dele e o sobrenome dela. Mais uma coincidência estranha. Ela faz faculdade de filosofia. Onde? Em Berkeley. E qual é o filósofo que ela estuda agora, para fazer os exames? Berkeley. Ela usa um moletom onde se pode ler a palavra Berkeley bordada. Um jogo de coincidências. Em certa cena, ela lê:

E não parece menos evidente que as várias sensações ou idéias impressas no sentido, por mais misturadas ou combinadas que estejam, não podem existir a não ser na mente de quem as percebe.

É um trecho de "Os Princípios do Conhecimento Humano", de George Berkeley.

A primeira vez que ouvi falar de Berkeley foi há uns sete anos atrás, em "O Mundo de Sofia", de Jostein Gaarder. Parece um pouco bobo, mas é verdade: eu fiquei tão impressionada que fui atrás do livro do cara (que, por obra e graça da sabedoria dos meus pais, ou por uma coincidência estranha, eu achei aqui em casa). O livro é o mesmo que Claire Martin lê no filme que o professor assiste. Comecei a ler e, como os conceitos de Berkeley são um tanto complexos, adormeci. Tive um pesadelo horrível, acordei com um grito, angustiada. Sonhei que eu não existia, que eu era um pensamento, uma sensação impressa na mente de alguém que eu não conhecia, mas que se parecia muito comigo mesma (nunca vou esquecer esse pesadelo). Eram quatro da tarde e eu estava atrasada pra minha aula de Use of English (um curso paralelo que eu fazia na Cultura Inglesa; eu amava tanto aquilo lá que vivia fazendo cursos paralelos...). Pois bem, cheguei lá e fui incumbida da tarefa de ler e analisar um artigo da Time e na aula seguinte comentar as expressões novas, sua fonética e concordância. Minha professora, a mesma desde muitos anos e minha amiga pessoal, olhou-me bem nos olhos e disse: "Escolhi esse texto especialmente pra você, sei que você vai gostar dele". Chego em casa e quase morro de susto. O texto era sobre a obra de Berkeley, mais especificamente sobre um curso cujo programa era a obra de Berkeley na Universidade de Berkeley. Silêncio no meu quarto. Ei, o que está havendo aqui? É só o que consigo pensar. Um jogo de coincidências estranhas, só pode ser. Não. Não quero mais ler Berkeley, nem O Mundo de Sofia nem esse artigo inoportuno. Estou assustada. Nesse ponto lembro que Sofia também fica assustada no fim do capítulo sobre Berkeley. Ele a assusta, tanto quanto a mim. A última frase dela nesse capítulo é: É como viver um pesadelo. Ou: É como viver o pesadelo, no meu caso.

Foi uma semana cheia de coincidências estranhas essa. Eu procurava não dar crédito a elas, mas estava tão sensibilizada que tudo parecia me falar das teorias de Berkeley e do meu pesadelo. Eu lembro muito bem de não ter comentado nada com ninguém para não parecer uma louca obsessiva. Eu tinha medo de dormir e de ficar sozinha. Eu achava que eu estava recebendo sinais e que alguma coisa sobrenatural iria acontecer, e eu definitivamente não estava preparada pra isso.

No fim das contas, não aconteceu nada demais, quer dizer, sem contar com as coincidências, que na minha opinião, já queriam dizer muita coisa. O tempo passou e Berkeley sumiu da minha vida.

Até o dia em que Guiom comprou a Cult e na contracapa eu li quais eram os livros selecionados para receber o prêmio Portugal Telecom. Qual estava entre ele? "Berkeley em Bellagio", de João Gilberto Noll. Tudo bem até aí. No dia seguinte eu compro a Bravo!, e leio um artigo sobre quem? Noll, o próprio. No mesmo instante pensei: olá Berkeley, voltasse, hein? Deixei quieto. Sabia que ele voltaria a se mostrar no momento certo e esperei.

Dois meses depois, vi o Noll em pessoa no Centro em Cena. Boquiaberta decidi comprar o livro. Só consegui achá-lo dois meses depois. Só consegui lê-lo mais dois meses depois. Tudo bem Berkeley, eu espero por você.

E eis que esbarro em Berkeley no livro de Paul Auster. Tchanram! Até que enfim nos encontramos de novo, baby, senti saudades de você. Pego "O Mundo de Sofia, releio o capítulo sobre ele. Pego o livro dele, recomeço a ler. Ok, você venceu. Virei uma obcecada agora e só me curo quando eu te entender.

O problema é que Berkeley era um bispo irlandês. Tudo bem até aqui. Nada pessoal contra os bispos que não conheci pessoalmente. O problema mesmo é a teoria dele, que fascina e ao mesmo tempo me causa uma certa repulsa, uma vez que não sou cristã.

Berkeley (em poucas e adaptadas palavras) dizia que não podemos ter certeza de que existimos, de que as coisas e seres que nos cercam existem de verdade. Pra ele, a realidade é uma criação da nossa consciência, e essa nossa consciência, assim como tudo o mais que conhecemos, incluindo a idéia de tempo e espaço, são nada mais que impressões contidas na mente (ou sei lá onde) de uma força superior, sobre a qual não temos o menor controle.

Ou seja, a gente não é gente de carne e osso. A gente é pensamento. O pensamento de alguém cuja presença podemos apenas sentir de leve, já que esse alguém é imaterial, aliás, como nós, as coisas, os seres, etc. É claro que Berkeley, sendo um bispo da Igreja Católica, está falando do deus cristão. E é dessa parte que eu não gosto. Não porque eu não acredite nesse deus (mesmo porque eu acredito em outros), mas porque eu não acho que deuses sintam prazer em manipular fantoches. Ou tenham tempo para se preocupar com isso.

Enfim, o que sei é que Berkeley encasquetou comigo. E eu com ele. Decidi ler o livro dele todo. Pretendo decifrá-lo. Depois eu conto como vai o meu caso de amor com a minha mais nova paixão literária fulminante.

domingo, 15 de agosto de 2004

Eu era Berkeley, o célebre filósofo sensualista que acreditava, dizem, que a subsistência das coisas dependeria da qualidade da percepção e não da feitiçaria da linguagem - e qual percepção eu poderia ter de mim mesmo naquele vão noturno que quase me engole num repente?

...então me vejo aqui em Bellagio já sem saber o que fazer de mim, tenho a intuição de que há muito não saio daqui de onde adivinho os meus despojos no pó que se levanta misturado ao sol que não me anima mais mas que me devora, devora-me no ocaso dessa hora que lenta cai atrás daquele monte lá na frente, com o topo já bem nevado de novo, o vento ardendo em minhas orelhas como se eu ainda as possuísse: estou aqui, só vejo o monte, a noite que rola pela encosta e esconde de mim a imagem que nem sei se tenho ou tive, se não fui um engano...

Eu era Berkeley em Bellagio, o bispo e filósofo irlandês em retiro pisando em folhas secas, me afastando da janela atrás da qual um pianista moderno e uma mulher vestida de outrora talvez ensaiassem alguma ópera, talvez chamada "Fantasia quase sonata depois de uma leitura de Dance", em honra sim de Liszt, que aqui vivera uma paixão fervida, enquanto eu caminhava com cuidado, temendo escorregar no limo da umidade, ouvindo Cosima quem sabe cantar em seu leito de morte qual a Dama das Camélias...

Nenhuma cena era mais pungente que essa, reservada apenas aquém tem o privilégio de morrer no próprio leito, cercado pelos seus amores, sabendo que a mão que afaga seus cabelos, e essa agora a segurar a sua como se do alto de uma embarcação puxando a mão do náufrago, que essas mãos são as únicas sensações de vida.




Esses são trechos de "Berkeley em Bellagio", um dos mais impressionantes romances que li nos últimos meses, de João Gilberto Noll, um cara que eu acho um gênio da literatura brasileira contemporânea (não que eu saiba tudo sobre o assunto, mas, eu leio um pouquinho às vezes...).

Hoje o post é só isso mesmo. Porque hoje eu me sinto uma típica personagem de Noll: perdida, sem rumo, sem lugar no pequeno mundo, sem noção de qualquer coisa que seja. Mas tudo bem... Acontece de vez em quando. E o mundo gira, mesmo tão pequeno. E a vida segue, mesmo tão incerta.

quarta-feira, 11 de agosto de 2004

Essa estória eu vou contar porque vale a pena ser lida. Guiom foi pra França. Quer dizer, a essa hora ele já voltou pra Campinas, mas vou explicar direitinho que é pra ninguém reclamar. Ele foi pra Paris na quinta à noite, foi a trabalho, tudo pago, só pra pegar umas peças que tinham pressa de chegar.
Deveria pegar as peças no aeroporto mesmo e de lá voltar. Mas pediu pra ficar porque se ele não ficasse nem um dia, seria muita crueldade. E ficou, um dia e meio, pra deixar a mãe dele feliz e me deixar morrendo de inveja, dele e dela...


João não recebeu muito bem a volta as aulas dessa vez. Motivo inesperado por uma mãe que não se cansa de ser pega de surpresa: Mila (uma coleguinha de classe altamente popular na escola) não quer mais brincar com ele. E ele só quer brincar com Mila, porque só gosta de brincar com ela, ponto. O problema é que eu não estava preparada pra lidar com uma desilusão amorosa tão precoce.


João e a profissão da semana:
Toda vez que a gente vai abastecer o carro, ele desce rápido e previne:
- É que eu tenho que prestar bastante atenção em como se faz que é pra não errar quando eu crescer e for colocador de gasolina.


João, explicando a Bruno porque o adversário do Yu-Gi perdeu dele no duelo de cartas:
- As cartas dele eram muito "patéticas"...

João, exercendo seu poder de me policiar:
- Mãe, posso tomar refrigerante?
- Não, João, sexta-feira não é fim de semana.
- Se sexta-feira não é fim de semana, porque você vai de noite pra Feirinha?
(Ele tomou refrigerante...)


Estou quase terminando de ler "O Livro das Ilusões" do americano Paul Auster. É o primeiro livro que leio dele e já virei fã. Li esses dias uma entrevista na Bravo! com Martin Amis, um expoente da literatura inglesa atualmente, e ele dizia que o romance precisa deixar um pouco de lado as invencionices narrativas e voltar a contar boas estórias. Nesse sentido, de saber contar boas estórias, Auster é mesmo um grande romancista. O romance mais novo dele é "Noite do Oráculo", mas parece que o melhor é "A Invenção da Solidão". Os outros são "Da Mão para a Boca", "Timbuktu", "Leviatã" e "A Trilogia de Nova York". Fica a recomendação pra quem quer conhecer o que se faz de melhor em literatura de língua inglesa hoje em dia.


Essa semana toca um pouco de tudo na minha vitrola. Sonic Youth, Massive Attack, P J Harvey, Lenny Kravitz e sem parar uma música do Goo Goo dools que eu adoro e que me faz chorar, Íris..

And I¿d give up forever to touch you
¿Cause I know that you feel me somehow
You¿re the closest to heaven that I¿ll ever be
And I don¿t wanna go home right now



Esse fim-de-semana vimos no cineclube "Cidade dos Sonhos" de David Lynch, com a Naomi Watts no elenco. Como era de se esperar, vindo de Lynch, um filme muito louco e muito estranho. Mas um ótimo filme, mesmo assim. Não fosse o meu amigo João Faissal, que providenciou uma convincente explicação baseada em Pablo Vilaça, eu estaria sem entender patavina até agora, por mais esperta que eu queira ser.

Vi também "A Viagem de Chihiro", um dos melhores desenhos que já vi até hoje (e olha que eu já vi quase todos disponíveis no mercado...). Épico e trágico, surreal até dizer chega, sem vestígios do modelo Disney consistente em fornecer uma ¿lição de moral¿ à criançada. O diretor (Hayao Miyazaki) deve ter queimado um tanto os neurônios para criar um universo tão "perturbador e deslumbrante em medidas rigorosamente iguais" como quer Sérgio Augusto de Andrade, da Bravo!. Ou então a infância dele não foi das melhores.


Finalmente terminei minha mudança do apartamento no Bessa de volta pra casa da minha mãe. Se eu disser que estou radiante, vou estar mentindo feio. Queria minha casa, meu marido, minha vida, etc., etc., de novo. Mas, enfim, a gente não escolhe certas coisas que vão acontecer na nossa vida, né mesmo?


Minha primeira semana de aula na turma nova de Direito foi tranqüila. Algumas pessoas chatas, outras nem tanto; aulas e professores, idem, idem. Agora estou no quarto ano, tenho que terminar esse troço de qualquer jeito, por mais chato que seja.


Na Aliança Francesa também, primeira aula do semestre, tudo na paz. E eu percebi que eu aprendo francês mais ouvindo Guiom e demais franceses ao meu redor falando do que tendo aulas...